segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Colombo

Se posso escolher, gosto de lembrar do ocorrido acontecido desse jeito:

Segunda metade do século XX, início dos anos oitenta na Ilha do Fundão, campus da UFRJ. Duas pontes conectam a ilha ao continente e uma delas, que é bem curtinha, serve para muita gente atravessar a pé de lá pra cá e de cá pra lá. Mas nesse dia, à uma da tarde e com o Sol a pino, só um estudante alto e magricelo parece querer se aventurar pelo caminho. Tanta coisa na cabeça...dentre elas, salta aos olhos (da mente) a arrogância de quem se acha um gênio capaz de redefinir os caminhos da Física com o trabalho mais fundamental e importante de seu tempo. Além disso, ele se vê com um futuro promissor no mundo das artes e, se houver espaço, quer dar sua contribuição indelével à literatura...um novo Borges, talvez. Os pensamentos desse pretenso Napoleão do intelecto são interrompidos quando um fusca, que estava prestes a iniciar a travessia da ponte, sobe a calçada e, abandonando qualquer direção lógica, começa a se dirigir para um ponto da “praia” que limita aquela parte da Baía da Guanabara. O carro estaciona e salta um sujeito já vestido com uma roupa de mergulho. O nosso “futuro Einstein”, que tinha parado de andar e acompanhou toda a ação, não consegue acreditar no que está prestes a acontecer. Aquela água deve conter muito mais matéria orgânica em decomposição e óleo queimado do que H2O propriamente dito. Se fosse para...
Mas o fato se adianta, desmancha as ideias e com um único mergulho o incauto explorador do lixo líquido cria uma singularidade quase milagrosa, de tão absurda.

Pois é, presenciar aquele ato do mergulhador biruta foi certamente uma das experiências mais significativas na lenta cadeia de eventos que transformaram aquele jovem observador, cheio de soberba, no que sou agora, neste momento, aqui, envolvido com estas teclas e com este texto. Foi a chance de ver um movimento capaz de quebrar paradigmas com tanta coragem e vigor quanto eu nem sequer imaginava existir. E tudo isso numa atitude anônima, sem a glória do reconhecimento. Uma prova, pra deixar todos os mestres de queixo caído, mostrando com clareza que os caminhos possíveis são infinitos. A cada passo, tantas opções quanto se queira.
Lembro que tive um ímpeto virtual de chegar ao meio da ponte e lá do alto mergulhar na podridão. Se perdia em originalidade, ao menos vencia em impacto. Mas a droga da sensatez me convenceu a guardar essa insanidade em um recipiente adiabático, pra ser usado no futuro.

Mas não hoje...

Leucócito 
desenho digital

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

BigBang


Paulo Freire me disse uma vez (através de um dos seus livros cujo título não consigo lembrar) que nós, pessoas humanas, só estamos ou somos felizes quando cuidamos uns dos outros. Assim que li, concordei em gênero, número e grau. E fiquei orgulhoso por concordar tanto com um cara feito ele, de importâncias e realizações realmente realizadoras (como poucos há). Mas aí... Aí vem o raio da multiplicidade e grita no meu ouvido com todas as vozes, enumerando com um rigor irritante cada uma das infinitas ocasiões em que eu fui absurdamente feliz com coisas minhas (tão somente minhas...) ou partilhando com alguém-próximo-por-demais (e aí, não conta). Pois então...ficou na minha cabeça, nem sei desde quando, que praticar o bem era aquela coisa meio nebulosa que tinha a ver com tomar conta dos  outros, já o mal era tratar com desprezo tudo que está fora de nossa-pele. Usando uma linguagem matemática:
O Mal = Não_estar_nem_aí para X, se X não pertence a {EU MESMO};
Tá bom, mas se existe uma coisa que sei é que eu não inventei este retalho de mundo virtual para explicar coisa nenhuma, e sim pra repartir meus trabalhos. Então, essa introdução queria simplesmente preparar espaço para duas imagens que , nos meus olhos, estão muito ligadas a antagonismos como Eu X Nós, ou Solidão X Yellow Submarine, ou ainda Mal X Bem (que para mim, é quase igual a Doente X São ), ou Liquidariedade X Solidariedade, ou algo do gênero...
Tem mais um negócio, quase tudo que faço em arte começa com alguma (ou algumas) pergunta(s) que eu escrevo pra mim mesmo e da mistura (eu) + (?) surge um... (repare que isso não é também uma explicação, é mais algo como contar um segredo), enfim, surge. Mas esses dois aí embaixo não passaram por esse processo. Ambos apareceram envolvidos em contextos específicos e, de repente, estavam lá... Duas historinhas bem rapidinhas: Um deles era pra ser a ilustração de um conto, escrito por um amigo, que tinha um personagem que só conseguia se relacionar com os outros pela dor. E se alimentava disso.
O outro estava pronto quando vi, há quase trinta anos: um mendigo sentado na calçada, em Copacabana, fabricando uma bola meticulosamente com trapos e sacos de lixo. Um homem sozinho fazendo seu brinquedo. Na mesma hora, eu percebi que tinha sido presenteado com um possível vislumbre do Mito da Criação.

Aquele
desenho digital feito no MyPaint

Genesis
Oleo sobre tela - 70 x 50 cm

terça-feira, 23 de julho de 2013

A Razão de Tudo: Um Sentimentozinho de Nada

Explicar é urgente, imperioso...parece que é sempre assim. Quantas vezes vemos arroubos de paixão ou explosões de fúria serem transformados em discurso coerente por explicações tão lógicas que quase chegam a fazer sentido. Amores ou rancores virando bláblábá. Mergulhar nu, sem proteção, no caos emocional? Dá um medo danado. Queremos a superfície plana do pensamento concatenado, das causas e consequências bem estabelecidas. Queremos poder gritar fiz tudo de cabeça pensada, e quem não vê isso é idiota! 
Queremos...?...
Sei lá, porque gosto também bastante da ideia de que tudo é instável, nebuloso e está o tempo todo se desmanchando. E de imaginar todos nós fraquinhos, quase cegos, teimando de forma inusitada (corajosa?) em continuar indo em frente(?) tropeçando-e-se-estabacando. Essa teimosia é tão... e tanto... Assim é reunir um milhão de pessoas na rua e na praça, algo que surge pra mim na esfera da desciência, como um superlativo de correr como louco, ou flutuar no sal do mar, ou olhar pro Sol. 
Coisas que não cabem na palavra

Feito um grito

Feito um riso



#pecadoriginal
desenho digital feito com o MyPaint

terça-feira, 7 de maio de 2013

Fractal


A alegria de encontrar uma palavra nova... de um lado, tenho um ego-que-se-acha--físico-cientista que entende que essa é mais uma peça que pode ajudar na árdua tarefa de explicar o mundo. Por outro, o ego-que-queria-ser-artista-poeta espera que ela possa ser mais uma aliada na hora de desconstruir tudo. De qualquer modo, foi muito muito cedo que a convivência desses dois (três, quatro, n) egos (por uma dádiva, não sei...) se tornou pacífica, de uma vez e pra sempre. Com o tempo, no entanto, percebi que essa paz não era partilhada nos corações e mentes de meus companheiros de aventuras. A cada bifurcação que encontrava pelo caminho, sentia o meu batimento acelerado pelo júbilo de mais uma oportunidade de me dividir. Aí eu olhava pro lado e via a rapaziada toda suando de nervoso. Começava a ouvir aquele papo de agora tem que escolher se vai pra lá ou pra cá, ou não dá pra ficar em cima do muro! Então eu arriscava que muro? Tem muro não, olha só. Dá pra ir pelos dois...A turma me olhava, fazia um silêncio de uns dois segundos em respeito à nossa amizade e recomeçava a discussão, vambora, é pra que lado??
Às vezes penso que essa 'dádiva' possa ser vista como uma limitação e me imagino num mundo onde a maioria das pessoas é feita com bloquinhos de Lego e eu fui construído com bolinhas de gude. Que talvez isso tenha me impedido, e me impeça eternamente, de ser um ponta-de-lança, de ser aquele que crê tanto na própria trajetória, que é capaz de derrubar paredes e inaugurar novos mundos. E isso me deixa um pouco cismado, porque muitos dos ídolos da minha infância e de sempre eram pontas-de-lança. Mas...
Bom, acabei pulando esse parágrafo por dois motivos: primeiro porque acho legal largar essas divagações assim, pelo meio; e segundo porque acabei de ver que essa postagem, com o texto e o desenho e tudo, ficou sendo uma continuação da anterior. E eu não tinha planejado nada disso. Quando resolvi repersonificar o príncipe da dúvida, nem passei perto de perceber a correlação com um desenho de trinta e dois anos atrás...
O ego-numerólogo começou logo a fazer contas. Aquele desenho eu fiz com dezesseis anos, esse eu fiz com dezesseis mais dezesseis mais dezesseis...E aí começa 'o que será que eu desenhei há dezesseis anos atrás? Ou o que vou desenhar daqui a sessenta e quatro anos?'...

Hamlet
Desenho digital feito no MyPaint

quinta-feira, 7 de março de 2013

"O espelho no espelho"


Houve um tempo, quando eu fazia minhas primeiras inexperiências no mister de ensinar física, em que uma danada duma pergunta aparecia e me incomodava, quase sempre no início do ano letivo. Em geral, nascia na boca de algum aluno que ainda não tinha frequentado os cursos de Resignação I e II: “Professor, pra que serve isso que o senhor está fazendo?” e às vezes emendava “se eu não for virar cientista, pra que isso vai ser importante na minha vida?”. O tantão de tempo que já passou serviu pra me convencer de que só o fato de alguém construir uma frase terminada com esse “?” já é um motivo de comemoração, e nunca (ou quase nunca) um tormento. Ela, a frase, é uma oportunidade de usarmos aqueles próximos minutos pra ficarmos todos um pouquinho maiores, um pouquinho mais vulneráveis (sim, isso é bom!) e um pouquinho menos velhinhos.
Hoje também, quase nunca me vejo nessa busca incômoda por justificar as ações (do tipo 'ensinar física', 'pintar um quadro', 'escrever/ler poesia') com razões e motivos nobres, como se qualquer coisa precisasse ter uma função que lhe desse o direito de existir sem dor na consciência. Mas a ideia da necessidade-justificativa está muito longe de ser frágil. De vez em quando encharca algum caminho e deságua em coisas como “Olha, eu acho que você pode, e até deve, fazer suas pinturas e desenhos. Mas isso é hobbie! Pra sua vida, tem que ter uma profissão de verdade!”.
Pois foi, de certa forma cedendo créditos ao inimigo, que outro dia me vi feliz por (re)descobrir uma RAZÃO bastante clara para se produzir arte: Eu estava (re)vendo o conteúdo de minha pasta-verde-de-desenhos-muito-antigos e peguei um trabalho (é, chamo os meus desenhos de 'trabalhos') que acabara de completar trita e dois anos, feito na véspera do meu décimo sexto aniversário por um outro eu, que viveu há zilhões de histórias. E de um modo quase mediúnico, pude lembrar do risco inicial do lápis, da escolha das cores nos micro-tubos de aquarela, do vidro de nanquim, dos pincéis... mas, principalmente, tive uma 'conversa' com aquele 'eu' quase criança que pacientemente me relatou as muitas intenções e conquistas habitantes daquele papel formato A4.


Desenho com nanquim e aquarela sobre papel

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

"E a duração do lírio fora um hálito"


Confiança, a essência e o sumo dessa palavra preenchem pelo menos noventa por cento dos meus poros desde que me entendo por gente. Nas conversas eternas com meu irmão, eu sempre falava da certeza de que tudo ia dar certo e de como as pessoas à nossa volta estavam sempre tramando alguma coisa para me fazer mais e mais feliz. A primeira vez que me lembro de me sentir mais vulnerável tem a data do nascimento de minha irmã, doze anos mais nova que eu. A paixão incondicional por aquela pessoa minúscula e absolutamente frágil me fez ver de forma muito clara (como nunca tinha visto antes) os espinhos e arestas do mundo inteiro. As rochas que serviam de lastro para minha anti-paranóia continuavam razoavelmente firmes. Mas nada seria como antes, nunca mais. Lembro que, nessa época, passou a ocupar a minha agenda uma preocupação extrema com o cuidar-da-delicadeza-de-todas-as-coisas. Preocupação que fica bastante hipertrofiada com uma tragédia que mata mais de duzentas pessoas (a maioria delas tão jovens) num piscar de olhos.
Existe, é claro, uma parcela considerável do meu espírito que insiste em permanecer com catorze, quinze anos no máximo, e que, mesmo agora, me faz ouvir suas perguntas: Será então que vamos ter que virar todos nós vovozinhas servindo sopas e caldos quentes? Não vê que a vida flui incontestável por qualquer artéria que se preze? Não vê que é assim mesmo? Que “viver é muito perigoso”?
Percebo que não sei preencher esse questionário. Mergulhei de cabeça no mar de dúvidas e voltei de mãos vazias. Cuspi muita água e muito sal e nenhuma resposta...

Um gole de chumbo
Desenho digital feito com o programa MyPaint