sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ultrasonografia - parte II

Daqui a pouco, vai ficar tudo na terceira pessoa porque tive que sair, me ver de fora, para traçar (ia escrever “entender”, mas seria exagero) pelo menos uma parte do que estava acontecendo. Achei justo, portanto, narrar a história desse jeito, estrangeiro de mim mesmo.

O sujeito, o personagem, o ser vivente em torno do qual se aglomeram as palavras desse texto está andando numa estrada reta. Não pergunta se gosta do caminho nem duvida dele. Segue em frente. A crise, que vai dar algum sabor ao percurso, está prestes a saltar nas suas costas, mas ele não sabe ou, se sabe, guardou o conhecimento em algum canto escuro sem revelar nada aos olhos ou aos pés.
Assim, quando o turbilhão o alcança, faz uma festa com o pobre. Nem sinal da estrada reta, pior, pés e chão viram conceitos vazios de sentido. Flutuar, quando possível, e engolir a água de todos os afogados são as ações do momento. O controle dos nervos e tendões fica esquecido e o homem só se dá conta de que estava se debatendo como louco quando nota um cansaço insuportável em cada um de seus músculos.
Desespero pra subir, emergir, voar e poder pousar de novo no velho e conhecido trajeto.
Concentrando todos os esforços, ele consegue eventualmente alguns breves instantes de contato com o ar. Nessas horas respira com o desejo dos sobreviventes. No entanto, fica claro que as últimas doses de energia estão no fim. E a existência de terra firme surge como uma memória do passado distante que pertencia a outra pessoa.
Não é a inteligência e nem a sabedoria quem traz um rumo, uma solução. Por total falta de opções, ele escolhe o único destino que sobrou: o fundo. Vai até onde não pode mais, fecha os olhos e pensa “agora ou vai ou...” e abre as narinas e a boca inspirando tudo que é possível. E, milagrosamente, apaga.
Uma eternidade depois, abre os olhos e vê diversos rostos familiares, amigos. Todos aflitos com uma espera, que parecia não ter fim, pelo retorno dele. Sorriem aliviados e juntos.
Levanta (só então percebe que estivera deitado) encarando os rostos com ternura. Olha o céu e os horizontes com a exata noção de que não tem a menor ideia de onde está e nem para onde vai.

Leve e surpreso, descobre que o sorriso continua na face e principalmente na alma, lugar de que nunca devia ter mesmo saído.

Segunda Lição de Anatomia

terça-feira, 15 de julho de 2014

Os assentos de cor laranja...


Sempre que tenho que qualificar, hieraquizar, julgar valor ou estabelecer limites mínimos, eu me embanano de verdade. Deve ser porque, pra ser bem honesto, não acredito nesse negócio. O que eu sei é que muitas e muitas vezes consegui desviar desse dilema com uma resposta que me pareceu clara e sedutora: “A avaliação é necessária e nada seria construído sem ela”. Mas tem algo aí que não desce. Algo relacionado com um tal de um verbo merecer. 
Veja bem, não sou nenhum tapado, e está claro pra mim que existem situações em que há mérito no mérito. Só para citar um mundo familiar, a exigência de que se admitissem apenas funcionários por concurso (um mecanismo avaliador de merecimento), fez um bem enorme às instituições públicas. Vitória da meritocracia sobre a bagunça geral que reinava antigamente, trazendo alguma ordem ao caos. Pegando esse rumo, fica parecendo mesmo certo que se levarmos essa ideia até as ultimas consequências os resultados só podem ser excepcionais, fazendo o céu na terra e construindo a utopia de verdade. Mas é claro que todo leitor, que ainda se mantêm fiel e desperto nesse ponto do texto, vai bradar em alto e bom som: “Péraí!! a gente já tá cansado de saber que o céu de uns pode muito bem ser o inferno de outros, e... utopia?? Utopia de quem?”
É justo nesse momento que eu bato com a cara na parede. E já bati tantas vezes que até esqueci qual seria o MEU céu na terra. Se pra mim não é claro, imagine quando perguntar pra todo mundo...
Nas caixas da memória tem, por exemplo, uma cena que ainda me arrepia: Uma corredora na maratona de uma olimpíada, ou algo que o valha, se aproximando da linha de chegada, andando toda torta. O controle motor já tinha ido pras cucuias há muito tempo e a mulher, pra lá de estropiada, se negando a receber qualquer ajuda até terminar a droga da prova. A enorme beleza que eu via nesse momento não se dissipou completamente (e sim, estou arrepiado agora), mas me pergunto se, de fato, encontrar tanta preciosidade numa atitude dessas não está no fundo no fundo relacionado ao embrião de uma cultura que traz um bocado de miséria e infelicidade. Temo que tenhamos enfrentado a escassez (da riqueza, da energia, das ideias brilhantes, da competência) por muito tempo, tempo demais... acostumamos com o desespero pela FALTA, e esse costume , quem sabe, nos impeça de ver (ou exigir) o fim dela. Como se um inconsciente coletivo qualquer nos fizesse crer que sempre vamos ter de aguentar uma boa dose de miséria.
Será que não é por isso que exageramos de maneira desmedida a valorização do ponto fora da curva? 
Passamos a ver aqueles que esbanjam talento, beleza, ou alguma outra coisa notável, como uma espécie de herói.
Claro, é belo e sublime esbarrar com algém que é super-hiper-fantasticamente bom em alguma coisa, alguém capaz de fazer maravilhas com as palavras ou com a música ou com as ideias ou com uma bola ou com o próprio corpo... e ficamos tão maravilhados que não vemos que todas essas coisas são brincadeiras que inventamos e que trazem, sim, cores e felicidade para a aspereza do mundo. Mas são só isso!!! 
E quem não tem um talento especial em alguma dessas coisas que o clube da humanidade valoriza?... é obrigado a dar tudo de si pra tentar e tentar e tentar...? 
O que?
Essa pergunta estava martelando na cabeça do Sérgio de trinta anos atrás. E foi ele que pegou tudo e transformou nesses traços e tintas aí:

  
 Pallas Atena
Lápis e Aquarela sobre papel