terça-feira, 25 de julho de 2017

Bombas de Vácuo

Faz um tempão. Eu era muito novo no trato com a linguagem e, quem sabe por essa falta de experiência, quando estava num belo dia no meio da construção de uma ideia, pensamento ou frase, deixei, por descuido, cair uma palavra no vazio. Ficou solta, sem contexto, sem antes ou depois. Só ela. Peguei aquela palavra (nem lembro qual era) de dentro da cabeça e coloquei na boca. Falei: “palavra”. E repeti “palavra”. E de novo “palavra”.
Pronunciei tantas vezes que, de repente, percebi que não lembrava mais o pensamento de onde ela tinha caído, nem pra que ela servia, nem se eu continuava repetindo o mesmo som do começo. Como se ela tivesse ficado presa na minha boca, que passou a brincar sozinha com a repetição e não estivesse mais disposta a devolver a “palavra” pra cabeça botar de volta no lugar.
Foi a primeira vez que entendi que a relação entre as coisas e os nomes criava uma série de riscos perigosos que eu nem suspeitava. Até então, só tinha visto benefícios nesse negócio de fazer representações do mundo com traços, linhas, letras e verbos. Mas naquele dia tive medo de que fosse possível, por desleixo ou maldade, usar o processo de repetição-pra-sempre, por exemplo, para esvaziar e desmanchar o significado de uma palavra. E então, em algum momento, ela deixava de existir. E vai que (aí estava meu medo) o par-coisa-de-verdade dela sumisse também da vida da gente…

Num arroubo de coragem e desespero, saí correndo até encontrar minha mãe em seus afazeres pela casa. Chamei pelo seu olhar e repeti: “PALAVRA”
Ela virou para mim com aquele jeito de já-conheço-as-maluquices-das-crianças e perguntou “O que é que tem, ‘palavra’?” E eu, “me explica?”
Com toda a paciência, ela me devolveu sentidos e significados e até ajudou a reerguer aquele pensamento ou frase que tinha ficado pela metade.

Passaram quase cinquenta anos sem que eu pensasse nessa memória, e foi preciso farejar o cheiro daqueles riscos perigosos lá da infância para ligar o alerta: no AGORA, em que a maior parte das histórias acontece nos caminhos da linguagem e não no mundo lá fora, comecei a dar pela falta de coisas que (tenho a impressão) já tivemos por aqui, conosco, existindo e sendo partilhadas. E de uma hora pra outra...não havia mais. Sumiram talvez tão completamente, que nem lembramos mais o que eram, deixando só a sensação de vazio triste. Como se alguém muito poderoso estivesse usando truques da mesma natureza daquele repetir-para-sempre, mas com tanta intensidade que fosse capaz de alterar a própria substância do mundo, apagando o que É e o que SERIA.

E o pior é que, pelo jeito, não estamos nem perto de reunir toda a paciência e a dedicação necessárias para resgatar os significados e sentidos e trazer tudo de volta para o seu devido lugar.

visão periférica