Faz
um tempão. Eu era muito novo no trato com a linguagem e, quem sabe
por essa falta de experiência, quando estava num belo dia no meio
da construção de uma ideia, pensamento ou frase, deixei, por
descuido, cair uma palavra no vazio. Ficou solta, sem contexto, sem
antes ou depois. Só ela. Peguei aquela palavra (nem lembro qual era)
de dentro da cabeça e coloquei na boca. Falei: “palavra”. E
repeti “palavra”. E de novo “palavra”.
Pronunciei
tantas vezes que, de repente, percebi que não lembrava mais o
pensamento de onde ela tinha caído, nem pra que ela servia, nem se
eu continuava repetindo o mesmo som do começo. Como se ela tivesse
ficado presa na minha boca, que passou a brincar sozinha com a
repetição e não estivesse mais disposta a devolver a “palavra”
pra cabeça botar de volta no lugar.
Foi
a primeira vez que entendi que a relação entre as coisas e os nomes
criava uma série de riscos perigosos que eu nem suspeitava. Até
então, só tinha visto benefícios nesse negócio de fazer
representações do mundo com traços, linhas, letras e verbos. Mas
naquele dia tive medo de que fosse possível, por desleixo ou
maldade, usar o processo de repetição-pra-sempre, por exemplo, para
esvaziar e desmanchar o significado de uma palavra. E então, em
algum momento, ela deixava de existir. E vai que (aí estava meu
medo) o par-coisa-de-verdade dela sumisse também da vida da gente…
Num
arroubo de coragem e desespero, saí correndo até encontrar minha
mãe em seus afazeres pela casa. Chamei pelo seu olhar e repeti:
“PALAVRA”
Ela
virou para mim com aquele jeito de
já-conheço-as-maluquices-das-crianças e perguntou “O que é que
tem, ‘palavra’?” E eu, “me explica?”
Com
toda a paciência, ela me devolveu sentidos e significados e até
ajudou a reerguer aquele pensamento ou frase que tinha ficado pela
metade.
Passaram
quase cinquenta anos sem que eu pensasse nessa memória, e foi
preciso farejar o cheiro daqueles riscos perigosos lá da infância
para ligar o alerta: no AGORA, em que a maior parte das histórias
acontece nos caminhos da linguagem e não no mundo lá fora, comecei
a dar pela falta de coisas que (tenho a impressão) já tivemos por
aqui, conosco, existindo e sendo partilhadas. E de uma hora pra
outra...não havia mais. Sumiram talvez tão completamente, que nem
lembramos mais o que eram, deixando só a sensação de vazio triste.
Como se alguém muito poderoso estivesse usando truques da mesma
natureza daquele repetir-para-sempre, mas com tanta intensidade que
fosse capaz de alterar a própria substância do mundo, apagando o que
É e o que SERIA.
E o
pior é que, pelo jeito, não estamos nem perto de reunir toda a
paciência e a dedicação necessárias para resgatar os significados
e sentidos e trazer tudo de volta para o seu devido lugar.
visão periférica