segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Tempo em estado sólido

Era assim:
Alô, mãe, tudo bem?
Oi, filho, tudo indo. E você?
Tudo ótimo!
Esqueço sempre de dizer várias coisas que não estão nada ótimas. Escolho, por exemplo, não lembrar que, de ontem pra hoje, mais duas pessoas passaram a dormir embaixo da marquise do banco Itaú, que fica no térreo do prédio onde moro. Que uma dessas pessoas é uma senhorinha quase da idade dela.
Há dois meses, há um ano, há dez anos nesse passo, o caminho seguia (para o colapso, talvez, mas seguia) em monotonia descuidada. Esticando o ouvido, dava até pra escutar o sussurro sei lá de quem: "vai, vai em frente, continua, continua!"
Acordar, levantar, organizar, preparar, prover, utilizar, cuidar, guardar, descansar, dormir, acordar, levantar, organizar...

De repente, sem mais nem menos, um soco no focinho do mundo atravessa o caminho e atropela o fluxo. Podia ser uma guerra total, um tilt irreversível do clima global, mas foi uma pandemia: 
covid-19.
Caminhos fechados, vazios. Pessoas recolhidas, guardadas.
O que pode vir por aí? Sou tomado por essa pergunta a cada segundo. Olho para os lados pra conferir se todos que amo estão seguros em seus "abrigos anti-bombas". Em todo pensamento que consigo elaborar, há um conflito que teima em se mostrar: 
De um lado, a esperança de que, "no final" da tragédia, surja um mundo novo, muito melhor do que este. Do outro, um desejo conservador, infantil e ingênuo de não perder nada de precioso dessa vida.
Desfechos divergentes e inconciliáveis.

O momento congela na tentativa de manter a sanidade e preservar aquele ritmo de acordar, levantar, organizar...Mas é bem difícil, sabe? Mesmo porque as sirenes podem tocar anunciando a queda das bombas a qualquer momento. Nessa situação, dentro do abrigo, os passos são tão pequenos, minúsculos mesmo, e ao que parece capazes apenas de conduzir a territórios de sonho. Em sonhos absolutamente comuns e corriqueiros que, se tanto, estão afastados só um milímetro daquilo que era, e que a gente queria muito que continuasse sendo...quase...

Alô, mãe?
Hoje eu desci e conheci uma senhorinha,
quase da sua idade.
Conversamos um tempão,
embaixo da marquise do banco Itaú.

Dia de colheita no Jardim Secreto da pequena burguesia