Se posso escolher,
gosto de lembrar do ocorrido acontecido desse jeito:
Segunda metade do
século XX, início dos anos oitenta na Ilha do Fundão, campus da
UFRJ. Duas pontes conectam a ilha ao continente e uma delas, que é
bem curtinha, serve para muita gente atravessar a pé de lá pra cá
e de cá pra lá. Mas nesse dia, à uma da tarde e com o Sol a pino,
só um estudante alto e magricelo parece querer se aventurar pelo
caminho. Tanta coisa na cabeça...dentre elas, salta aos olhos (da
mente) a arrogância de quem se acha um gênio capaz de redefinir os
caminhos da Física com o trabalho mais fundamental e importante de
seu tempo. Além disso, ele se vê com um futuro promissor no mundo
das artes e, se houver espaço, quer dar sua contribuição indelével
à literatura...um novo Borges, talvez. Os pensamentos desse pretenso
Napoleão do intelecto são interrompidos quando um fusca, que estava
prestes a iniciar a travessia da ponte, sobe a calçada e,
abandonando qualquer direção lógica, começa a se dirigir para um
ponto da “praia” que limita aquela parte da Baía da Guanabara. O
carro estaciona e salta um sujeito já vestido com uma roupa de
mergulho. O nosso “futuro Einstein”, que tinha parado de andar e
acompanhou toda a ação, não consegue acreditar no que está
prestes a acontecer. Aquela água deve conter muito mais matéria
orgânica em decomposição e óleo queimado do que H2O
propriamente dito. Se fosse para...
Mas o fato se adianta,
desmancha as ideias e com um único mergulho o incauto explorador do
lixo líquido cria uma singularidade quase milagrosa, de tão
absurda.
Pois é, presenciar
aquele ato do mergulhador biruta foi certamente uma das experiências
mais significativas na lenta cadeia de eventos que transformaram
aquele jovem observador, cheio de soberba, no que sou agora, neste
momento, aqui, envolvido com estas teclas e com este texto. Foi a
chance de ver um movimento capaz de quebrar paradigmas com tanta
coragem e vigor quanto eu nem sequer imaginava existir. E tudo isso
numa atitude anônima, sem a glória do reconhecimento. Uma prova,
pra deixar todos os mestres de queixo caído, mostrando com clareza
que os caminhos possíveis são infinitos. A cada passo, tantas
opções quanto se queira.
Lembro que tive um
ímpeto virtual de chegar ao meio da ponte e lá do alto mergulhar na
podridão. Se perdia em originalidade, ao menos vencia em impacto.
Mas a droga da sensatez me convenceu a guardar essa insanidade em um
recipiente adiabático, pra ser usado no futuro.
Mas não hoje...
Leucócito
desenho digital
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